2023.11.21

​​20 anos no Japão. O desafio de Shizuka Miyawaki que se acompanha as crianças que “crescem no Japão”

2023.11.21
Nanci Lissa Miyagasako

*Segue o link do artigo em japonês. / この記事には同内容の日本語版もあります > ブラジルから来て20年。「日本育ち」の子どもに寄り添うミヤワキ・シズカさんの挑戦

O aumento discreto de crianças que “crescem no Japão”

Em Ogaki (Província de Gifu),  cidade localizada a 30 km a noroeste de Nagoya, há várias fábricas de autopeças e outros produtos nos arredores, e muitos brasileiros (“nikkeis“) vivem na região desde a década de 90.

A sociedade japonesa, no auge de seu desenvolvimento econômico, expandiu a admissão de pessoas de ascendência japonesa do Brasil e de outros países, sob a Lei de Controle de Imigração revisada em 1990. Muitos desses imigrantes estrangeiros foram incorporados ao trabalho, por vezes precário, em fábricas.

Fotos: Daisuke Shibata 

Mais de 30 anos já se passaram desde aquela época.

Como consequência natural, atualmente não observamos apenas imigrantes de primeira geração que emigraram do Brasil, mas também um número significativo de brasileiros que vieram para o Japão com seus pais quando crianças, ou que nasceram no Japão.

Na cidade de Ogaki, os residentes estrangeiros representam pouco menos de 4% do total (a média nacional é de pouco mais de 2%). Dentro desta estatística, cerca de 40% são brasileiros, a maior comunidade estrangeira.

Todavia, em vez de um “dekasegui” de curto prazo, o “assentamento” de uma geração está, silenciosamente, em andamento. Elas não são “pessoas que voltarão um dia”. Elas nasceram no Japão, estudaram no Japão e aqui pretendem viver. A realidade dessas crianças “criadas no Japão” não é bem visível, e é por isso que eu quero falar delas aqui.

A aceitação dos nikkeis (trabalhadores) desde cerca de 1990 carecia da perspectiva de que eles são  pessoas que vivem, que têm filhos e famílias, e precisam da educação e do bem-estar.

Vejamos o exemplo de uma menina de 10 anos nascida no Japão, chamada Sofia.

*Todos os nomes das crianças citadas neste artigo, são pseudônimos, e seus perfis e histórias foram processados de maneira a preservar suas reais identidades.

O pai de Sofia veio do Brasil quando ela tinha 10 anos, acompanhado de seus próprios pais (os avós de Sofia). Ele estudou na “escola japonesa” até o ensino fundamental II (“chugakko“) e, depois disso, começou a trabalhar. Atualmente, trabalha em um local de demolição.

Sofia, que está na terceira geração, inicialmente frequentou uma escola primária japonesa, assim como seu pai. No entanto, seus pais pensavam que ela poderia voltar ao Brasil no futuro, dessa forma ela foi transferida para uma “escola brasileira”, onde poderia estudar em português.

Existe um número significativo de escolas brasileiras na região de Tokai, como Aichi e Gifu, onde residem muitos brasileiros, inclusive em Ogaki.

Shizuka Miyawaki, com quem conversamos, dirige um after school em Ogaki. (Foto) Em uma loja de produtos brasileiros do bairro.

Pensa em voltar ao Brasil ou ficar no Japão? O pai de Sofia, que já passou muito mais tempo no Japão, respondeu minha pergunta em japonês:

“Aconteceram tantas coisas, e minha ideia [de voltar ao Brasil] mudou muito. Pensei em transferi-la de volta para a escola japonesa, mas ela disse que queria continuar estudando na escola brasileira. É por isso que ela também está fazendo o Kumon, para não esquecer o japonês.”

Escola japonesa, escola brasileira e Kumon. Sofia cresceu nesse ambiente educacional e fala português e japonês muito bem.

Porém, mesmo dentro da mesma comunidade, a situação das crianças varia, e muito.

Há crianças que têm dificuldades em um dos idiomas, enquanto outras têm dificuldade nos dois idiomas. E mesmo que uma criança como Sofia seja capaz de conversar em português e japonês sem problemas aparentes, isso não significa necessariamente que ela também os esteja desenvolvendo como proficiência em linguagem para estudar, a linguagem específica usada num contexto acadêmico.

(*Distinção entre as habilidades comunicativas básicas interpessoais e a proficiência em linguagem acadêmica. Os termos originais utilizados por Cummins são BICS “Basic Interpersonal Communication Skills” e CALP “Cognitive-Academic Language Proficiency”)

Algumas crianças sofrem com a dúvida sobre a identidade, ou seja, não se sentem brasileiros, nem tão pouco japoneses. A maioria delas nunca esteve no Brasil. As famílias vivem um dilema na escolha entre a escola japonesa ou brasileira.

Crianças evitando umas às outras no ambiente escolar

Eu conheci a Sofia no “EspaSim”. Trata-se de um “after school” criado há oito anos em Ogaki. 

Crianças tanto de escolas japonesas, quanto brasileiras, frequentam o EspaSim todos os dias depois da escola. Ultimamente, a evasão escolar está se tornando cada vez mais perceptível.

A maioria das crianças do EspaSim, é de origem brasileira, porém atualmente, há uma criança japonesa e uma vietnamita entre os frequentadores.

O trabalho do EspaSim é criar um lugar confortável para as crianças, ajudar com a lição de casa da escola, e conscientizar a comunidade sobre a importância da educação. A equipe do EspaSim prioriza ouvir atentamente os sentimentos e emoções de cada um, desenvolver a autoestima e, consequentemente, uma identidade sólida.

Cerca de 30 crianças frequentam o EspaSim. Ela é financiada pelas mensalidades dos usuários e não há auxílio público (a escola também reduz ou isenta as mensalidades, dependendo da situação financeira da família).

EspaSim vem das palavras “espaço” e “simplificar”. O nome reflete o desejo de ser um lugar onde as crianças e os pais possam simplificar suas dificuldades no dia a dia em casa, na escola e no trabalho.

O after school foi criado em 2015 por Shizuka Miyawaki. Shizuka veio para o Japão em 2002, com 18 anos. Ela veio seguindo o seu pai, que já estava trabalhando no Japão.

Shizuka também trabalhou em uma fábrica no início. Ela planejava retornar ao Brasil eventualmente, mas sua vida passou a ser baseada no Japão, onde se casou e teve três filhas. Todas elas nunca estiveram no Brasil ainda.

Shizuka Miyawaki, nascida em São Paulo, Brasil, em 1985.  Foto tirada em uma rua perto de EspaSim. Ao fundo, há uma grande fábrica da Ibiden (componentes eletrônicos), que tem a sede em Ogaki.  A Kobelco Construction Machinery, ligada à Kobe Steel, também está próxima.

Shizuka começou a trabalhar com crianças de origem brasileira no Japão quando sua filha mais velha ainda era muito pequena. Como não conseguia encontrar uma creche ideal, ela mesma começou uma, a princípio, em um apartamento, onde também tomava conta de cerca de cinco crianças de outras famílias.

Ela também tem experiência de trabalho em escolas brasileiras: em 2008, ela entrou em uma universidade brasileira por correspondência do Japão para estudar pedagogia e obter sua qualificação de professora. Eu a conheci no ano seguinte em evento educacional.

Na década de 2000, quando o número de brasileiros vivendo no Japão ultrapassou temporariamente 300.000, garantir professores qualificados era um desafio generalizado para as escolas brasileiras em todo o Japão.

O EspaSim foi criado em 2015 pela Shizuka juntamente com Geny Murai. Geny trabalhava como assistente de apoio em escolas públicas em Ogaki, onde observou as muitas dificuldades enfrentadas por crianças de origem brasileira.

Os irmãos frequentam a EspaSim depois da escola. São buscados pela mãe depois do trabalho em uma fábrica de autopeças.

No entanto, logo após o lançamento do EspaSim, Geny adoeceu repentinamente e faleceu. Tendo perdido uma parceira insubstituível, Shizuka se desesperou.

“Ela quem via as coisas da escola japonesa, e eu a parte de português… Eu fiquei desesperada se ia conseguir, pois não sou muito boa em japonês.”

No entanto, um menino da segunda série chamado Rafael já havia começado a frequentar o EspaSim, e não podia desistir. A partir disso, Shizuka reuniu forças e decidiu continuar, ainda que fosse para aquela única criança que estava alí na sua frente.

A Shizuka

Rafael, que frequentava uma escola primária japonesa, escondia o fato de que frequentava o EspaSim.

“Certa vez, durante a aula na escola onde estudava, Rafael, ao fazer uma pergunta à professora ele ouviu  o seguinte comentário: ‘Bem, você é brasileiro, então não tem como evitar’. E me parece que essa experiência aparentemente incutiu nele a imagem de que ‘ser brasileiro é inferior’.”

“A mãe de Rafael o colocou no EspaSim porque não queria que ele negasse suas raízes brasileiras. Contudo Rafael não queria aprender nada relacionado ao Brasil, tinha o maior cuidado de não deixar que seus colegas soubessem na escola, dizia a seus amigos que frequentava ‘juku (cursinho)’ e mantinha o EspaSim em segredo.” 

“Ele adora a cultura japonesa, ele ama e entendeu a forma japonesa de pensar. Só que não entendeu a parte brasileira. Então ele nega. Eu não acho isso válido. Para a identidade isso faz mal.”

Crianças em idade pré-escolar também frequentam a EspaSim.

Shizuka me contou que recentemente reencontrou o Rafael, que havia saído de Gifu devido à transferência de emprego de sua mãe. Ele e sua mãe foram juntos à festa de aniversário de 8 anos do EspaSim. Na época, ele era estudante do ensino fundamental e agora está no ensino médio.

“Ele falou assim: ‘Se um brasileiro chegar em grupo de japoneses, o japonês vai tratá-lo com educação, mas não com respeito’”.

” ‘Os brasileiros devem ficar com os brasileiros e japoneses com os  japoneses. Se os brasileiros querem ser amigos dos japoneses, eles têm que fazer o mesmo com os japoneses’. Isso é sério, não é? Eu achei isso muito sério.  Isso é muito triste. Não consigo esquecer o que ele disse. Isso é autoestima muito baixo.”

Que tipo de experiência será que Rafael teve na sociedade e na escola japonesa? Ao conversar com a Shizuka, o termo “autoestima” aparece com frequência. É algo que ela dá muita importância ao lidar com as crianças. Eu acho que a origem, as raízes também representam uma parte importante disso.

A Shizuka corre fazendo compras entre as horas do “souguei (transporte)” das crianças

Maria, que atualmente está no ensino fundamental e frequenta o EspaSim, estuda na mesma escola que Rafael se formou.

Um dia, quando Shizuka foi buscá-la na escola, Maria lhe contou que um colega da mesma sala, que é de outro país sul-americano, disse para não falar mais com ele:

“Não fale mais comigo porque você é brasileira e você sabe falar português. E os japoneses aqui acham que quem fala português e fala outros idiomas é retardado. E se eu falar com você eu vou ser retardado também.”

Shizuka perguntou: “E como é que você está? O que você pensa sobre isso?” Maria respondeu:

“Coitado dele né? Porque se ele acha que quem fala outro idioma é retardado, e acredita mesmo nisso, retartado é ele, não é verdade?”

Cada criança enfrenta a realidade e tenta encontrar suas próprias respostas. Todos os dias, Shizuka ouve atentamente o que elas têm a dizer.

O EspaSim também  oferece uma variedade de atividades divertidas e educativas para as crianças. Culinária, taekwondo, pintura, etc. Uma Cubana, a quem conheceu através de redes sociais, dá aula de balé.

O Paulinho, também estuda na escola Japonesa durante o dia.

Vários de seus pertences escolares têm etiquetas de nome, nas quais ele tem um nome japonês diferente de “Paulinho”.

Sua família se mudou do Brasil para o Japão há mais de 20 anos. Suas duas irmãs mais velhas, que têm idades bem diferentes, nasceram no Brasil, e Paulinho é o único nascido no Japão.

As irmãs mais velhas, que se formaram nas escolas japonesas, não são tão boas em português e desejam dar ao irmão mais novo a oportunidade de crescer bilingue, ao contrário delas.

Também ouvimos as crianças e jovens que frequentam o EspaSim. Elas variam em idade e em suas preocupações.

Enquanto observa Paulinho, Shizuka diz.

“O Paulinho, ele não conversa com os outros brasileiros na escola. Ele gosta, você viu que ele gosta. Só que na escola ele não conversa. Por quê? Porque se não ele vai ser tratado de uma forma diferente. Neste momento, não é quando tratam ele diferente, ele evita estar perto dos outros para não ser tratado de forma diferente.”

Internalizando o olhar dos outros da sala, as crianças de origem estrangeira evitam umas às outras por serem “diferentes”. Existe uma realidade assim.

Newton Oshiro  veio para o Japão em 2007, aos 21 anos de idade. Ambos os pais têm raízes nikkeis e sua cidade natal, Campo Grande, na região central do Brasil, é conhecida como uma cidade com muitos imigrantes nikkeis de Okinawa. Estudou engenharia da computação na universidade.

O Newton Oshiro, dirige o EspaSim com a Shizuka. Ele teve um período como professor de inglês em uma escola de idiomas em Tóquio depois de perder seu emprego em uma fábrica devido a crise econômica de 2008. Naquela época, um aluno de 16 anos tirou a própria vida.

“Ele era brasileiro, de uma família de descendentes japoneses. E eu lembro muito bem que quando ele ia para a aula ele era uma pessoa normal, não havia nada de diferente ou estranho naquele aluno, só que ele não estava preparado emocionalmente para lidar com as cobranças da vida adulta…”

“Agora o problema da criança brasileira no Japão, principalmente nessa nova geração… Por que eu falo dessa nova geração? Porque a gente está vivendo um terceiro, quarto ciclo da vida dekasseguis.”

“Emocionalmente eles estão ficando cada vez mais frágeis, se você perceber. Porque agora eles são os filhos de pessoas que nasceram aqui, e foram criadas aqui. Já com falta dessa construção de identidade.”

O trabalho das crianças descreve as conexões familiares.

Como será que essa sociedade deve mudar para garantir um lugar seguro para todas as crianças que “crescem no Japão”?

Trabalho dos pais e o “souguei (transporte)” das crianças

Diariamente há diversos horários de “souguei (transporte)” no EspaSim.

Como não há instalações semelhantes nas proximidades, as casas dos usuários estão espalhadas por uma grande área e cada família tem necessidades diferentes em momentos diferentes do dia. Shizuka e outros membros da equipe se dividem para levar e trazer as crianças.

Dentro dos veículos de “souguei“. Algumas crianças residem não apenas na província de Gifu e na cidade de Ogaki, mas também em áreas distantes como as províncias de Mie e Aichi.

O processo básico é que as crianças são buscadas à tarde, após o horário de saída da escola, nas escolas locais, passam um tempo no EspaSim e são deixadas em suas casas à noite. Em alguns casos, os pais vêm ao EspaSim para buscar seus filhos depois do trabalho.

Quando visitamos o EspaSim, eram férias de primavera e não havia aulas. Portanto, o “souguei” das crianças começava bem cedo, às 6h da manhã. Isso se deve ao fato de que muitos dos pais são trabalhadores temporários (“haken“) em fábricas e precisam chegar ao trabalho bem cedo. Em alguns casos, a empresa busca e deixa os pais em casa, enquanto as crianças são buscadas e deixadas pelo EspaSim.

Para as famílias brasileiras a vida das crianças é significativamente afetada pela rotina exaustiva de trabalho dos pais no Japão. Algumas famílias se mudam repetidamente devido à flutuação de seus empregos. Por trás das figuras das crianças, é possível ver a angústia e os esforços dos pais.

Em uma dessas entrevistas dos pais, ouvimos uma mãe solteira cuja filha frequenta o EspaSim, enquanto espera o seu “souguei” de manhã. 

A mãe primeiro coloca a filha no veículo de coleta da EspaSim. Em seguida, ela aguarda o carro de coleta para seu próprio trabalho.

-Que tipo de trabalho você faz?

No momento eu estou fazendo “baito“, eu faço o trabalho com peças de pachinko. Montagem. Só que é lá em Hashima, eu chego tarde e ela fica até o último horário. Mas ela adora. Quando eu chego mais cedo para levar ela embora, ela chora. Não quer ir embora. 

-Já vive a bastante tempo no Japão?

A primeira vez que eu vim foi em 2008. Nem tinha minha filha ainda, aí eu vim, peguei a crise, fiquei 3 anos e fui embora. Eu ia voltar em 2011, só que daí aconteceu aquele “Tsunami” aí cancelaram o visto. Falaram assim “seu visto foi cancelado devido ao Tsunami“, aí eu não consegui voltar. 

Aí eu fiquei lá, arrumei emprego no Brasil, fiquei por lá quase 9 anos. Aí como me separei do  pai da minha filha, eu pensei que não daria para ficar no Brasil, não tinha como manter uma criança sozinha. E eu vim. 

A Shizuka dirigindo o carro para levar as crianças para suas casas. Ela mesma é uma mãe solteira que cria três filhas.

-Você se tornou uma mãe solteira e voltou ao Japão para criar a sua filha.

Nossa… no começo eu dava arroz com sal porque não tinha o que dar para ela.

Quando eu cheguei, a empreiteira falou assim “daijoubu!”, porque eu falei que eu sou mãe solteira. Eu não tenho alguém que fique com ela, aí eles disseram “não, daijoubu! daijoubu!” e deu para trazer né, aí eu vim. 

Cheguei aqui, me largaram numa quitinete por dois meses, e não me davam emprego. E comecei a reclamar, porque eu preciso trabalhar, estou sem dinheiro. Como é que eu faço com a menina? 

Com a ajuda dos amigos da época de 2008, consegui passar por esses dois meses.

-A história era diferente de suas promessas anteriores.

Não, eles me deram o vale de ¥40,000 mas eu tive que retornar. Mesmo eles não me dando trabalho, eu tive que retornar. 

Até hoje eu devo a passagem de vinda, porque eu falei para eles que “vocês não cumpriram com a proposta de me dar o emprego, então eu sei que eu devo, mas só vou pagar quando eu puder. Não tenho pressa”. 

As empreiteiras aqui quando eu falo, “Ah, eu sou mãe solteira. Minha filha tem 6 anos.” “Ah, dame.” Então é difícil para a gente que é solteiro, e tem criança pequena. Eles não pegam. 

À noite no carro

-Como sua filha começou a frequentar o EspaSim?

Ela estava numa escola brasileira, aí ela começou a se cansar porque era uma coisa assim monótona, não tinha esse negócio de desenvolver e tal. E resolvi por aqui. Agora ela está se divertindo e se desenvolvendo bem. 

Agora ela chega cansada de tanta coisa que ela faz lá, ela chega toma banho, come e capota, dorme. Ela fica feliz, porque ela fala, me conta tudo o que ela fez.

-Você colocou sua filha em uma escola brasileira com o objetivo de retornar ao Brasil?

Não, na verdade, eu ia colocar na escola Japonesa, só que o horário… Aí eu coloquei na escola brasileira porque a escola brasileira conciliava melhor com o horário.

Durante a conversa o carro que veio buscá-la chegou.  Ela disse que era um trabalho de montagem da máquina de pachinko.

O EspaSim não está voltado apenas para as crianças, mas também atende às necessidades dos pais.

Isso provavelmente se deve à posição das pessoas de origem brasileira na sociedade japonesa. O trabalho precário, e as condições de vida não mudaram muito ao longo dos anos.

Muitos adultos estão tão envolvidos em sua rotina diária de ida e volta entre a fábrica e a casa que não estão conectados a nenhum outro relacionamento ou comunidade. Há poucas oportunidades de aprender japonês de forma sistemática. O EspaSim também é um lugar para esses pais.

É o exemplo de Ricardo Primo, cujo filho frequenta o EspaSim, trabalha em uma fábrica de autopeças e também dá aulas de teatro no EspaSim, o que ele estudou na universidade. Quando era mais jovem, ele teve a experiência de fazer oficinas de teatro para crianças no Brasil, e começou a fazer aqui. 

Ricardo Primo (esquerda). Ele conheceu sua esposa Silvana em Marília, uma cidade com muitos imigrantes japoneses no estado de São Paulo.  Vive no Japão por mais de 20 anos e agora trabalha como operador de empilhadeira em uma fábrica de peças relacionadas à Toyota.

No feriadão deste ano, ele teve um grande evento de destaque. Quando roteirizou, dirigiu e também atuou em uma peça de teatro baseada em um livro de Ricardo Monteiro Lobato, (bisneto de Monteiro Lobato, um mestre da literatura brasileira). A peça teve por volta de 250 espectadores, entre eles o próprio autor do livro que veio do Brasil para a ocasião.

Segundo Shizuka, o Primo estava muito feliz e realizado. 

“Para ele é muito bom. Porque ele está na fábrica há vinte e tantos anos. Ele criou as filhas trabalhando na fábrica. Então ele nunca fez algo assim extraordinário (no Japão), nada que trouxesse inspiração para ele.”

O Primo me contou em japonês, um idioma que aprendeu no dia dia do trabalho:

“Eu me sinto melhor quando venho aqui. Meu corpo está cansado, mas me sinto bem. É por isso que venho aqui para ajudar o máximo possível. Durante as férias de verão e primavera, venho o máximo que posso.”

A Selma. Nasceu em Goiânia, na região central do Brasil. Veio para o Japão em 1991 com seu marido de ascendência japonesa e trabalhou em uma fábrica de autopeças em Shizuoka. Teve um filho e uma filha quando retornou ao Brasil e voltou ao Japão em 2007.

Selma, apelidada de Selminha é amada por todos, é um dos adultos que apóiam o EspaSim. Ela é responsável pela limpeza no início da manhã ou no final da noite. Ela nos disse:

“Shizuka precisa de mais apoio, por isso eu aceitei a entrevista.”

Quando Selma e sua família retornaram ao Japão em 2007, após a dureza da vida no Brasil, seu filho tinha 10 anos de idade e sua filha tinha 4. Agora, ambos concluíram o ensino médio e são adultos, mas estão vivendo no Japão com seus próprios desafios.

Ela se tornou extremamente consciente da importância da infância por meio de suas próprias experiências e apoia o trabalho da Shizuka em prol das crianças.

Brigadeiros são a solução 

No EspaSim costuma ter atividades culinárias. 

Nesse dia, algumas crianças se reuniram na cozinha e começaram a fazer brigadeiro. Leite condensado, manteiga e cacau são misturados e aquecidos em uma panela. A mistura e então resfriada levemente e enrolada em pequenas bolas. Por fim, elas são cobertas com chocolate granulado e estão prontas para comer.

O mel é um ingrediente secreto que ela aprendeu com sua avó.

Havia uma razão pela qual elas estavam fazendo brigadeiro.

Não para comer por conta própria. O objetivo é vendê-los por 500 ienes o pacote para adultos envolvidos com o EspaSim.

O dinheiro arrecadado é para a aluna chamada Kátia. As circunstâncias familiares impediram de pagar pela excursão ao aquário que todos iam. 

Shizuka nos contou como isso aconteceu:

“Quando uma das crianças não pôde participar da excursão, as meninas encontraram sua própria solução.”

Kátia veio para o Japão quando tinha oito anos de idade, sem nenhum conhecimento de japonês, há cerca de cinco anos.

Ela entrou em uma escola primária local, mas não recebeu o apoio adequado suficiente e continuou a ter pouca ou nenhuma compreensão das aulas.

Foi nessa época que ela também começou a frequentar o EspaSim depois da escola. Refletindo sobre esse passado, Shizuka diz.

“Estava muito mottainai porque ela não sabia português, não sabia japonês, não sabia nada. Agora lê, entende as coisas, e participa das aulas. Mas no começo ela lia lia lia, falava falava… e ficava “hum..?”  não entendia realmente de que se tratava. Ela frequentou regularmente a escola japonesa, porém não entendia as aulas, apenas ficava lá ouvindo.”

Shizuka fala sobre as crianças que abandonam a escola. Não são poucas as crianças que não vão à escola.

Pouco depois de passar para o “chugakko” (ensino fundamental II) no Japão, Kátia parou de frequentar a escola. A Shizuka sempre conversava com ela, mas ela não conseguia falar, e Shizuka relatou que já esperava que isso pudesse acontecer:

“Assim que ela entrou no ‘chugakko’, começou a sentir dor de cabeça e passava mal todos os dias, só olhei pensei, tá estranho… pouco tempo depois ela saiu da escola.”

A Kátia não é a única criança que abandonou a escola. Shizuka e sua equipe travam uma batalha diária para tentar mostrar a estes estudantes, que existem outras opções. Existem testes de equivalência para a escola tanto brasileira, quanto japonesa, a escola americana onde se pode estudar a distância, dentre uma série de outras oportunidades:

“Eu sei que a minha função é mostrar para elas, que podem ir para o colégio americano, brasileiro ou para o japonês.  Depende deles mesmo.”

Crianças participando de atividade culinária. Nesse dia, fizeram pastel.

O que será que o tempo passado no EspaSim significou para Kátia, que até agora passou por tantos conflitos na escola, em casa, e no Japão?

Alguns meses após nossa visita a Ogaki, Kátia nos contou sobre seus sentimentos em um vídeo de selfie.

“Quando alguém fazia algo para mim, me batia e essas coisas, eu não fazia nada. Eu ficava quieta, ou chorava. Tipo… na minha escola tinha um menino, ele me batia muito. E eu não fiz nada porque eu não queria bater nele. Eu achava que se eu batesse nele ia levar bronca, e eu que estaria errada nessa história.”

“Mas agora… Um outro garoto me provocou muito, e eu levantei e bati nele. Do jeito que eu falei com ele, até ficou com medo de mim,  e eu deixei ele sem argumentos. Então eu acho que isso mudou muito em mim, da menininha frágil que eu era, eu me transformei em uma menina que, se alguém mexer comigo, eu coloco no seu devido lugar. Minhas amizades também mudaram bastante, hoje escolho melhor meus amigos. É isso.”

Ela coloca seus pensamentos firmemente em palavras contra a sociedade e outras pessoas que a negam. Ela pode ter adquirido essa força pelo tempo que passa com adultos que a ouvem, apoiam, e instigam. E também com amigos que gostam de sua companhia, e se ajudam mutuamente.

O cotidiano no Espasim 

O cotidiano do EspasSim se deve ao trabalho e ao apoio de vários adultos, com Shizuka no centro.

Além de alguns funcionários principais, há professores de uma ampla variedade de cursos (idiomas, cultura, esportes etc.) e pais que ajudam nas tarefas diárias.

Liandra Mori. Ela é de Curitiba, no sul do Brasil. Viveu na França por alguns anos, inclusive como estudante de intercâmbio, e dá aulas de francês para crianças no EspaSim. Ela também ministra cursos de literatura brasileira e culinária.

Liandra, que veio para o Japão com seu marido de ascendência japonesa, conheceu o EspaSim em Ogaki em 2020. Ela encontrou um artigo sobre o EspaSim na mídia da comunidade e achou que parecia interessante, então veio visitá-la. Ela também se deu bem imediatamente com a Shizuka.

Os problemas enfrentados pelos migrantes no mundo todo são semelhantes, de acordo com a Liandra. 

“Na França, onde vivem muitos imigrantes de vários países, é comum ouvir franceses se dirigindo aos estrangeiros com frases do tipo. O que faz aqui? Essa não é a sua terra… volte para sua casa.”

Ela me contou que ficou pensando:

“Como é que a gente vai ensiná-los a trabalhar com isso, a superar isso?”

As experiências que as crianças contaram no primeiro dia em que se conheceram, a questão da identidade e do bullying lhe pegou muito, ficou remoendo aquilo em casa.

As crianças cozinharam um prato e comemoraram o aniversário do amiguinho. Os pais também participam, trazendo bolo e salgadinhos.

O EspaSim é ativo nas redes sociais e na mídia da comunidade. A atmosfera é sempre divertida e cheia de energia positiva.

Entretanto, nos bastidores, tanto as crianças quanto seus pais encaram suas dificuldades. Essa entrevista deixou isso bem claro para mim. É por isso que eu acho que todos eles estão tentando superar isso juntos.

Enquanto assistia pelo meu celular às atualizações diárias postadas por Shizuka e seus colegas, isso me inspirou e eu fiquei pensando em suas iniciativas, porque também a Shizuka tem uma idade próxima a minha, e é igualmente brasileira. 

E senti-me na obrigação de transmitir, mostrar também para os japoneses, a existência dessas mulheres batalhadoras e seus desafios diários. Este foi o objetivo deste artigo.

EspaSim no Instagram (@ escola.espasim)

Há crianças que perdem, ou sequer encontram um lugar na escola japonesa. E há crianças que não se adaptam também na escola brasileira. O EspaSim tenta, de várias formas, apoiar essas crianças que crescem no Japão. E as crianças também se ajudam mutuamente.

Entretanto, depender apenas de seus esforços não parece ser uma boa ideia. Por exemplo, até hoje, ao contrário das crianças de nacionalidade japonesa, as crianças de nacionalidade estrangeira não são obrigadas a frequentar a escola e, não são poucas as crianças que são deixadas de fora da escola pelas autoridades e escolas locais.

(*De acordo com o Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia (MEXT), quase 10% das crianças estrangeiras de 6 a 15 anos não frequentam a escola ou sua situação escolar é desconhecida.)

E quando não há nenhum tipo de auxílio público, como é o caso do EspaSim, ou esse apoio é insuficiente, como em muitas escolas brasileiras no Japão, os pais são obrigados a arcar com todos os custos. Shizuka e a equipe do EspaSim estão operando no limite.

A ideia de que, para se viver bem no Japão, é necessário ser igual aos japoneses e ter que negar completamente suas raízes (roots) e a rota de sua vida (routes) é extremamente prejudicial e precisa ser combatida.

Temos acompanhado os desafios de Shizuka Miyawaki e das crianças e adultos que se reúnem no EspaSim. Eu acho que esses vários desafios e dificuldades que vieram à tona fazem parte da realidade da sociedade e que nós na sociedade japonesa devemos encarar e enfrentar. 

Da esquerda para a direita: autor, membros da equipe Liandra, Shizuka e Selma.

CRÉDITO: Nanci Lissa Miyagasako (reportagem e redação) / Daisuke Shibata (reportagem e fotografia) / Hiroki Mochizuki (reportagem e edição)

*Segue o link do artigo em japonês. / この記事には同内容の日本語版もあります > ブラジルから来て20年。「日本育ち」の子どもに寄り添うミヤワキ・シズカさんの挑戦

TEXT BY NANCI LISSA MIYAGASAKO

Nanci Lissa Miyagasako
Tradutora / Instrutora de Idioma / Escritora

Brasileira Nikkei da 2.5 geração, veio para o Japão em 1991 com 9 anos. Cresceu na cidade de Kanagawa. Durante a faculdade (Chuo University-Tokyo), participou como voluntária de atividades educacionais da Associação Comunitária Monte Azul (São Paulo). No Japão, participou de atividades relacionadas ao auxílio de crianças estrangeiras nas escolas. Produziu o documentário “Roots of Many Colors (2007)”, junto com amigos de origem estrangeira também crescidos no Japão. Possui mestrado em sociologia da educação pela Tokyo University of Foreign Studies. Atualmente vive em Nagano.